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sábado, 30 de maio de 2020

ALGUMAS PROPOSIÇÕES COM CRIANÇAS


Algumas Proposições com Crianças*

A criança está completamente imersa na infância
a criança não sabe que há-de fazer da infância
a criança coincide com a infância
a criança deixa-se invadir pela infância como pelo sono
deixa cair a cabeça e voga na infância
a criança mergulha na infância como no mar
a criança é o elemento da criança como a água
é o elemento próprio do peixe
a criança não sabe que pertence à terra
a sabedoria da criança é não saber que morre
a criança morre na adolescência
Se foste criança diz-me a cor do teu país
Eu te digo que o meu era da cor do bibe
e tinha o tamanho de um pau de giz
Naquele tempo tudo acontecia pela primeira vez
Ainda hoje trago os cheiros no nariz
Senhor que a minha vida seja permitir a infância
embora eu nunca mais saiba como ela se diz

*Título de um poema de Ruy Belo, in ‘Homem de Palavra[s]’




Quando olhamos uma criança, para a vermos de modo completo e holístico, temos de ser capazes de descobrir o outro lado do espelho onde mora a sua infância; recordar a nossa própria infância que se perdeu no horizonte dos deveres de adulto.

A infância vem de longe, é um país em construção onde o para sempre ganha contornos definitivamente provisórios. É o caos da abertura ao novo, à surpresa, à aventura. É a frontalidade de combater o tédio, a coragem de ter febre de viver, ainda que as feridas nos joelhos façam chorar lágrimas verdadeiras. É brincar, brincar, brincar. O acto de brincar como verdade ancestral chega do primeiro século da nossa história e é repetido em cada primeiro dia de um bebé recém-nascido.

A infância está na origem do processo de fazer acontecer a heterogeneidade, a multiplicidade, a complexidade, a mobilidade, a criação lúdica: tantos caminhos em redor e sobre o mundo, em completa liberdade, porque o brincar não tem metodologias.

As palavras são o nosso melhor instrumento para explicar tudo: ideias, actos, sonhos, receios, causas e consequências; servem para descodificar a vida e a morte das pessoas. Contudo, na criança o discurso linguístico é quase insuficiente, apresentando-se através de um vocabulário e de uma construção frásica ainda simples. Assim, ela utiliza outras construções criativas para se definir como pessoa. O tempo da infância corresponde, de certo modo, ao período iniciático a partir do qual a criança toma consciência de si enquanto ser humano. A infância como cultura fundamental do ser, do estar e do saber fazer é livre, criativa, expansiva, e eminentemente espiritual. É um voo avassalador sobre as nossas cabeças velhas.

A abertura das creches e dos jardins-de-infância neste tempo pandémico assombrado pela Covid-19 colocou as crianças no centro de uma situação de cariz existencial, com consequências devastadoras no futuro dos humanos, a começar nesta geração que agora acolhemos nas instituições educativas. É um processo instituído pelo Governo que vai originar mais prolemas do que aqueles que resolve.

Ao brincar, a criança transforma e transforma-se. Os gestos lúdicos do pequeno ser, numa profunda proximidade relacional com os seus pares, são a verdadeira autenticidade do conteúdo do intensamente humano que carregamos dentro de nós. A creche e o jardim-de-infância adulterados com regras de distanciamento entre as crianças, isolamento de grupos, ausência de materiais pedagógicos, inexistência de partilhas e desinfecções sobre desinfecções são ambientes destruidores dos afectos, da liberdade e do respeito pelo outro. Nestas circunstâncias paradoxais, o outro é exactamente isso na percepção da criança:

- Aquele ser distante já não é meu amigo e não brinca comigo. Estou sozinha.


Foto do jornalista da BFM Lionel Top


As creches e os jardins-de-infância vão abrir e acolher as crianças.
As crianças vão ficar ali, estranhas umas às outras.
A tristeza é uma doença.
É só isto que eu tenho para dizer.

Adília César

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