Algumas Proposições com Crianças*
A criança está completamente imersa na
infância
a criança não sabe que há-de fazer da
infância
a criança coincide com a infância
a criança deixa-se invadir pela infância
como pelo sono
deixa cair a cabeça e voga na infância
a criança mergulha na infância como no mar
a criança é o elemento da criança como a
água
é o elemento próprio do peixe
a criança não sabe que pertence à terra
a sabedoria da criança é não saber que
morre
a criança morre na adolescência
Se foste criança diz-me a cor do teu país
Eu te digo que o meu era da cor do bibe
e tinha o tamanho de um pau de giz
Naquele tempo tudo acontecia pela primeira
vez
Ainda hoje trago os cheiros no nariz
Senhor que a minha vida seja permitir a
infância
embora eu nunca mais saiba como ela se diz
*Título de um poema de Ruy Belo, in
‘Homem de Palavra[s]’
Quando olhamos uma criança, para a vermos
de modo completo e holístico, temos de ser capazes de descobrir o outro lado do
espelho onde mora a sua infância; recordar a nossa própria infância que se
perdeu no horizonte dos deveres de adulto.
A infância vem de longe, é um país em
construção onde o para sempre ganha contornos definitivamente
provisórios. É o caos da abertura ao novo, à surpresa, à aventura. É a
frontalidade de combater o tédio, a coragem de ter febre de viver, ainda que as
feridas nos joelhos façam chorar lágrimas verdadeiras. É brincar, brincar,
brincar. O acto de brincar como verdade ancestral chega do primeiro século da
nossa história e é repetido em cada primeiro dia de um bebé recém-nascido.
A infância está na origem do processo de fazer
acontecer a heterogeneidade, a multiplicidade, a complexidade, a mobilidade, a
criação lúdica: tantos caminhos em redor e sobre o mundo, em completa
liberdade, porque o brincar não tem metodologias.
As palavras são o nosso melhor instrumento
para explicar tudo: ideias, actos, sonhos, receios, causas e consequências;
servem para descodificar a vida e a morte das pessoas. Contudo, na criança o
discurso linguístico é quase insuficiente, apresentando-se através de um
vocabulário e de uma construção frásica ainda simples. Assim, ela utiliza
outras construções criativas para se definir como pessoa. O tempo da infância
corresponde, de certo modo, ao período iniciático a partir do qual a criança
toma consciência de si enquanto ser humano. A infância como cultura fundamental
do ser, do estar e do saber fazer é livre, criativa, expansiva, e eminentemente
espiritual. É um voo avassalador sobre as nossas cabeças velhas.
A abertura das creches e dos jardins-de-infância
neste tempo pandémico assombrado pela Covid-19 colocou as crianças no centro de
uma situação de cariz existencial, com consequências devastadoras no futuro dos
humanos, a começar nesta geração que agora acolhemos nas instituições
educativas. É um processo instituído pelo Governo que vai originar mais
prolemas do que aqueles que resolve.
Ao brincar, a criança transforma e
transforma-se. Os gestos lúdicos do pequeno ser, numa profunda proximidade
relacional com os seus pares, são a verdadeira autenticidade do conteúdo do
intensamente humano que carregamos dentro de nós. A creche e o
jardim-de-infância adulterados com regras de distanciamento entre as crianças,
isolamento de grupos, ausência de materiais pedagógicos, inexistência de
partilhas e desinfecções sobre desinfecções são ambientes destruidores dos
afectos, da liberdade e do respeito pelo outro. Nestas circunstâncias
paradoxais, o outro é exactamente isso na percepção da criança:
- Aquele ser distante já não é meu amigo e
não brinca comigo. Estou sozinha.
Foto do jornalista da BFM Lionel Top |
As creches e os jardins-de-infância vão
abrir e acolher as crianças.
As crianças vão ficar ali, estranhas umas
às outras.
A tristeza é uma doença.
É só isto que eu tenho para dizer.
Adília César
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